quarta-feira, 17 de março de 2021

Pantones

 



É de cores...

Às vezes, num rasgo de ironia aos meus olhos fica Branco-Luminescente com o que reflete em contraste a mim na penumbra; ou Verde-Pistachio com casca dura mas fácil de abrir. Lembra-me Amarelo-Açucar quando é meloso, ou Roxo-Mirtilo quando é menos doce, mas liga bem ao pequeno almoço. Vejo-o também pontilhado de Azul-Bebé nos irresistíveis acordares de menino. Cresce em degradé de Beje-Garoto ao Castanho-Chocolate que adoro comer. Ganha uma paleta de Encarnado-Sangue quando o calor é menos angelical e arde em cores de lareira. Tem nuances de Cinzento-Névoa que pode carregar a Antracite-Tempestade, e há alturas que entorna Verde Lima quando vitamina coreografias tribais pela sala. É também Rosa - algumas vezes hilariantemente Fúschia.

Mas em essência, para mim, ele é magnificamente dourado.

                                                                                                                                                                    Photo by Peter Lippman

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Serotonina


Estou convicta que há uma maldição que assola as musas: o terem forçosamente de ser etéreas para coexistir.

As Musas, quando evocadas à tangibilidade, são oferecidas à Ara como caução à imensa glória de um iniciado num rito passagem Initium novae vitae, exortando a sua ascensão.

A Musa, que tem memória curta, deveria era tomar gotas e ficar surda.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Eminência Parda




Estou aqui. Um bocadinho afastada, sentada a fugir dos teus olhos quentes, do teu hálito morno, dos teus dedos em lume brando a sentir-me derreter, a saber que à distância de um impulso podes saltar e tornares-me um doce de colher. 



France Galop Chevaux by Peter Lippmann

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Comfortably Numb

..

Veio um convite. 
Sabia que o era porque lia “Convite” em letras redondas empoladas a prata. Tinha uma flor de tecido numa fita de cetim a colar-lhe as pontas, como lacre. Abriu-o como quem abre um cubo com sustos, que encerram um palhaço tirano com fome de espantar. Estava vazio de letras ou insinuação. Não tinha onde, quem e porquê. Não havia remetente, ementa ou Porto de Honra, não tinha como trajar, ou quando ir.
Incomodou-o.

Depois veio uma caixa.
Descobriu que não o era porque quando desembrulhou o papel pardo, viu que tinha forma de caixa mas não tinha tampa ou abas para abrir. Sentou-se.

Recebeu ao terceiro dia um copo de vidro grosseiro com uma palhinha em celofane. Encheu-o de água, soprou e deixou as mágoas borbulhar em jacuzzi.

Esperou e não chegou mais nada. 
Um ano depois, recebeu um espelho partido.



terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Bóias




Eram dez para a meia-noite.  Estava a descer a rua quando te vi. Noto que por cima de ti não chove, mas que eu venho saída do mar e penso que sou uma sereia que se perdeu há anos e não sabe que já não tem cauda.  

Os sapatos são barcaças chatas que fazem barulhos que soam ao desentupidor de borracha no lava loiças da minha avó, o cabelo risca com os restos de rímel linhas curvas e escuras no rosto, e eu sinto-me um monte de miséria pronta a ser torcida para um balde de águas passadas. 

Paro por baixo das arcadas, acendo um cigarro e espero junto a ti.
                                                                               
Olá- dizes -Aqui não chove.
- Olá. Sim, mas tenho de seguir.
- Não vás já.  Entra e sobe... fiz um bolo, dividimos. Eu parto, tu escolhes.


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Eu, o teu invólucro.




Invento-me por vezes na temperatura que aumenta no teu corpo ou nos teus olhos piscos e jeito de menina, num faz de conta que sou o que és. Acompanho-te silencioso desde que nasceste.  Gostas de mim no momento pernilongo quando escorregas depressa instantes antes de te embalar. Não adormeces no sofá, na cadeira.  Evitas levar-me onde te incomodam os esconsos. Tens o hábito (estranho diria) de projectares casas, construir casas, decorares casas. Há quem medite, ou recite mantras, tu cansas-me! Vences-me porque me esgotas a visitar salas. Dás-lhe corpo, partes paredes, arredas móveis, tiras gente e pões Minottis, enquadras armários-contadores, mesas Deco, e velas Byredo a cheirar a Biblioteca (as tuas “osmias” confundem-me). Depois desarrumas tudo e trocas por uma parede Eva Menz e são agora  04:30 da manhã e eu ando a pôr gardénias em jarros na enorme mesa tosca no alpendre, enquanto apontas a sentenciar "mais para a direita!", sentada num  cadeirão velho que acabaste de estofar verde-musgo.

Tens bom acordar porque adormeces bem.
Sorris pela manhã. O teu sorriso acorda imediatamente antes das tuas pernas. Demoras-te um minuto a falar de boca fechada - porque achas que a língua demora o seu tempo e te faz cócegas se for apressada. “Umgfhs”  que tens a mestria de dominar, mas ouvido “Queres café com leite” soa a “Queres casar comigo”, o que pode gerar alguma confusão. 

Cobres-me para iludir o tom bege que te pontilha mais denso em camadas. Arrancas-me os trapos no fim do dia. Não guardo um cheiro - não como tu que conservas e assinas um que te assina há anos. Sou todos por onde passas e que ao primeiro passo que dás me afastas deles. Nada impregna em mim, mas pensando bem, sei tudo sobre os que não pressentes sequer, que se misturam por onde te passeias (se soubesses quantos paralelos vivo por ti…). Mas és tu quem pinta as estações,  e as que gostas na seda  são cores a saber a pistáchio, buganvílias ou ártico.

Gostas de imagens bonitas. Não tanto pelo ter e haver, mas pelo imenso prazer que te dá olhá-las. Celebrá-las. Fixá-las. No entanto nunca parece relevante recordares-te onde deixas o teu carro, não olhas para o relógio, não abres cartas e não choramingas as velas que apagas. Não vais ser avó,  serás outra coisa qualquer que não se define pela função.

Nada me assusta tanto como deixar de ter valor para ti. Sou o teu medo!  Chamas-me Perda. Sê tenaz. Não me percas! Sem que exista (Eu em ti),  o todo-poderoso em chama eterna não passaria de fogo-fátuo. Guarda-me. Sei que estou aqui para me vires olhar. Vens buscar-me como tesouro, mas não sou mais que lascas com legenda a representar o todo que lhe falta. Revisitas-me como quem recupera contos de crianças à procura de uma sabedoria que não poderia ter lido antes - Punção, Consciência e Melhoria (?). Mas tira-me o pó e aqui és tu, em partículas de acervo doirado. Esse pó que te sai dos dedos e que vais depositando na pele, morna e sem granulado. Na tua, e na deles....




Salvador Dali, Cubist Self-Portrait.


                                                                                                                                               

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

The curator





Tinha uma caixa de cheiros. 
Coleccionava essências destiladas da passagem das mulheres e homens na sua vida. Nem todos o faziam sorrir, mais ainda pesava-lhe senti-los delir sem que tivesse consentido deixá-los desmaiar ou transmutar em eflúvios amarelecidos a cheirarem a nada, anódinos. Resolveu como substituto coleccionar sons, gravar campainhas de porta, atendedores de chamada, ranger das camas, a cadência única de um passo…

Perguntou-me se achava isto patético. Achei que não. Ouvindo-o, imaginei que poderia orquestrar-te com vários recursos numa vibrante variação.






terça-feira, 15 de dezembro de 2020

AEON





Vinha tarde para casa quando vi um acidente. Nada que sugerisse ambulância, mas um molho de folhas garridas em mossas e chapa aos berros. Sigo até um outro, mais silencioso, que acaba de acontecer e pergunto-me se os dois quilómetros estariam fora da linha segura onde um portal de caos atingia a faixa. Viro a esquina e ia atropelando um gato. Galgo o passeio. Acordo no postal onde não gosto daquele escurecer precoce que as nuvens antracite provocam ao fim de um dia de outono. Tenho frio, gelo por dentro e sinto picos nos dedos, que não aquecem.
Hoje houve 2 acidentes e um gato que se safou. Olho e já choveu ali, sem me molhar.
Tudo à minha frente, uns segundos antes de mim.

Estás ai, não estás?

"Estás aí? Entrelaças-me o cabelo, aninhas-me a manta nas costas? Embalas-me? Responde-me, só desta vez, responde baixinho para não quebrar o encanto...Beija-me os olhos. Escreve-me num pangrama. Diz-me, subliminar numa notícia na rádio. Faz-me olhar contra um néon com sentido. Estás ai? Fica, ficas?"

                                                                   
Fotografia: "As asas do desejo", Wim Wenders




domingo, 29 de novembro de 2020

Arrumos de Outono





Sejam em abono de socalcos ou terraplanagem, sempre que empurramos um móvel podemos ver arrastado o lastro riscado na cera no chão. Se empanca no soalho empurramos de novo, entalamos um dedo contra a parede a latejar imencioáveis e não desistimos com as  lascas que saltam ou quando esbarramos o dito na vitrina e tilintam os cristais. Não é música para os ouvidos quando os apoios vacilam e a orquestra de metais soa a ribombar de percussão. Mas temos uma missão. Queremos mudar, controlar o mundo e isso… Isso é muito importante!

Luisa desapareceu pelos andares de um armário adentro enquanto alcandorada em pontas no tampo tentava pintar um canto do teto do quarto. Foi num curto espaço de segundos que se ouviu encolher em estrondo tornada mulher-do-mágico recortada nas caixas.…A cada 40 centímetros de espanto, uma costela partida. Foi retirada de um escombro de contraplacado, papel e cacaréus de gaveta.
Olhou para a sanca. Linda de branca, ficou.
Sorriu-se, pois então…



domingo, 11 de outubro de 2020

Candeias





Saudades.
As minhas crescem por ti, por vezes num ruído silencioso que ensurdece. É um subsom abafado que me distrai e me transporta para lá. Lá onde há cheiro de ti, para te desfolhar em álbum, separando as partes de um todo em câmaras que sabem a migalhas pela vontade do bolo; são sopros quentes que derretem gelos que chovemos salgados na tentativa de os obrigar a evaporar num eterno retorno. Tu, decantado pelos meus dedos, colhido nas minhas mãos em taça. 

Segue, mas quando puderes volta aqui por um instante.  Instala-te numa sinapse e viaja no meu sonho. Deixa a porta encostada enquanto sais de mansinho num expirar.  Não me acordes. Eu ia gostar muito de te rever.


Um ano antes: A esta hora já te abriram uma janela no crâneo. Ouvi dizer que seria um quadrado. Uma janela quadrada, com vista para uma cordilheira cinzenta.  Dizem que o cérebro é cinzento, sempre gostei do teu. Acho que tens um bom cérebro e também gosto de cordilheiras. Gosto que estejam a tratar bem dele agora. Dentro de horas deixas ser uma potencial ameça se entrasses na Vista Alegre do Chiado.


Fotografia: Ash, 
by Peter Lippmann





segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Insónia


Torço-me acordada. O Manel amua no sonho porque me mexo e não sossego e faço ranger-lhe um sono que não o descansa. Fico hirta a sentir a guinada enquanto me vejo cair flecha de ponta acesa, em vertigem onde estou parada na volta de um remoinho, e acho que já me vi aqui. 

Escorrego hálito ácido pela garganta, conheço-lhe o gosto, engulo e sinto o estômago arder e reprimo lembrar-me das muitas vezes que o ouvi borbulhar e o contive dentro.
Apago a vergonha de não ler avisos e não sair do quarto quando o alarme toca enquanto vejo todos fugirem do fogo e eu fico queda a querer acreditar que é engano deles. Olham-me incrédulos quando me porto como o Pedro sem lobo a ter sabido melhor e não ter corrido depressa e espantam-se depois quando avanço mais uma vez sem olhar a proibidos por onde esbarrei em excesso e multa, contra muros e gentes. 


O Manel abre agora os olhos por não embalar mas, sinto, censura-me pelo mesmo. Que posso dizer quando me baralho a silenciar punções que piscam “nefasto” sem conseguir contrariar algum imperativo irracional. Quando sei melhor e erro. Erro, não há atenuante. O Manel acorda e balbucia-me agora qualquer coisa que irritado pretende sossegar-me para o deixar dormir, a mim, que estou acordada a afundar-me corroída num travo a bílis. Tusso. Queria expurgar o espesso que se acumula na boca. Nada sai que não um ronco seco. Tenho uma bola de pêlo. Tenho um grão na garganta.

" Não faças isso, Joana! Já te disse quinhentas vezes!"- Tantas o disse à miúda e estou a ver-me aqui, agora a querer patear quando me oiço dizê-lo a mim mesma: " Graça! Quinhentas vezes, disse-te quinhentas vezes".  Esperneio sem pensar e acordo de vez o Manel que se levanta e me grita: "Que raio te deu hoje, Graça?".  
Não sei que raio me deu, mas estou a soltar um grão. Onde há erros clonados a boiar na superfície dos meus gestos, há um grão lá em baixo. Estou a mergulhar sem escafandro a entender o porquê da gosma-bola-de-pêlo teimosa que insiste em obstruir o canal entupindo-me de chegar ao fundo ou ao cume para respirar melhor. Leio o sintoma inflamado: o grão alojado no sitio errado,  esquecido e penhorado por camuflagem madrepérola que de tempos em tempos a vida se encarrega de cobrar implacável os juros.

"Manel... Vá, anda lá tu para a cama, não tenho sono, hoje fico no sofá."


                                                                                                                   Fotografia: Peter Lippmann

domingo, 12 de julho de 2020

Gourmandises



Apetece-me cozinhar-te em lume brando.

Estás cru. Seguro-te com as duas mãos, retiro-te da embalagem com os meus dedos a colher-te como pinça, sinto-te a textura fresca, tensa, sinto o teu peso, cheiro-te em ânsia e confirmo perdida de vontade que me vais saber bem. Inalo nano- partículas até encher o peito de ti, chegas-me ao palato espessas-me a saliva pelo tanto te querer provar, molho-te com a língua, e sinto-te o gosto. Aliso-te de mãos espalmadas e redefino-te formas enquanto as moldas a mim.
Tempero-te comigo. Deixo-te depositado o meu sal e o meu óleo e adejo-te ramos de tomilho embebidos em calda de citrinos. Não te deixo repousar sob meu corpo, besunto-te a carne e humedeço-te os sulcos, rolo redondos, daqueles rosa pimenta, que incorporas. Aperto-te e escorregas como êmbolo que inebria num casulo ao meu toque.
Vou-te virando enquanto te aqueço a fogo e sinto escorrer os sucos que recupero sobre a tua pele tostada. Contenho-me a não te devorar al dente. Com fome.
Estalas agora, crepitas, oiço-te, estás tão quente, tentas-me...

Estás pronto. Vou-te comer.

Fotografia: Poached pear, by Jill Keller

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Same Same But Different


Ontem almocei com o Antero. Quis almoçar comigo para me contar que se quis matar.
Que era verdade. Que a vida não tinha diagramas com saídas de emergência, nem pontos de encontro, nem salvadores vestidos de neoprene vingador.  Que não havia V.2, nem próximos capítulos; que a morte era o fim-último para viver agora;  que acabar era libertador, sem fé para recomeçar noutro lado. Que ficou internado três meses numa clínica psiquiátrica para redescobrir que amanhã tem dias e outras variações ao nome. Tivera Renato morrido, não veria a sua cabeça torrar ao sol de uma tarde de Outono em Lisboa, à volta de um prato de percebes e croquetes com mostarda.

Culpa e glória da química e dos seus mícrons entre avaria e êxtase.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Metábolo



Estou a caminho.  
Espero-te ali, depois de virar aquela curva com relevé centrífugo e sair disparada até ricochetear no teu peito que amortece o golpe por onde deslizo em refluxo a ressacar no teu ombro.  Queria-o esponja e ensopá-la. Que não a espremesses para não perderes uma gota de mim, as que contêm os meus seminais, desovas da minha penumbra. Fazeres delas lago. Beijo-te com as duas mãos a emoldurar-te o rosto, a atracá-lo ao meu como barca a pontão. Olhar-te os olhos verde-algas, deixá-las amarrar-me as pernas os braços, afundar-me em oblívio e ganhar guelras para respirar no teu fundo denso. Alapar-me e ser levada na corrente, tirares-me o peso, amoleceres-me a casca e me deixares esvoaçar como medusa. Acolhe-me e alimenta-me de plâncton, dos ínfimos pequenos tudos. Abro e fecho a boca como peixe sem som, inundo-a de ar, transformo-me em bolha e espero que me entendas no meu ir e vir sem nexo, ensandecido por ter passado para dentro dela por osmose a rodar como ponteiro contra o tempo em voltas ao avesso num aquário em forma de malga.
Olha-me com lupa, de perto, e vê-me gesticular lá dentro a olhar-te por uma grande angular que te transforma num grande nariz e rio-me por to querer mordiscar enquanto espero que me inspires.

...Se me espirrares, volta por favor num redondinho, ao princípio do texto.



Photo by Peter Lippmann

quarta-feira, 4 de março de 2020

Sem espólio





Vejo-te chegar. Ruges hurras à passagem, dás passos a fazer tremer o chão.
Sim, os bichos fogem, és o lobo do homem. És um e sem seres, sentes-te mil.
Vem! Desafio-te. Chega a mim num batalhão.

Aviso-te que me blindei, que não me fazes vacilar. Não me trespassas, não passas. Hoje nada podes. Mas vá, vieste, arremete então. Aponta e atira. Satisfaz a ânsia de deixares como touro o teu rasto e nuvem de pó no chão, no ar depositado em mim que não me faz pestanejar. Esgota as forças. Dá tudo. Lança-me chamas, charme. Investe! 
Sentes a náusea do esforço? A cãibra a tolher-te? Ensopaste-te em suor, esse que te oxida em ferrugem estaladiça o tronco? Olha-me! Vê-me indemne. Repara, não sorrio, não derramo choro a hidratar a terra. Queimei-a! Ficou estéril cultivada com escorrer do teu sal.  Não existo aí onde me defrontas, não me vergas porque não tenho mais corpo para dobrar e morderes a nuca. És um Homem sem lobo, sem batedor nem faro e não tens mais como seguir-me.

É agora que, sem perdão nem prisioneiros, te deixo partir. Levanta-te! Parte! Silencia a derrota e lambe exausto os pulsos já sem empunharem mangual. Apazigua-te. Nada temas, que não dou ao arauto anunciar solene a tua vergonha.


Photo: Faca 2005 Duarte Belo

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Rosas




Era uma mancha escura em movimento lento pontilhada de fios grisalhos apanhados em puxos curvados por olhos postos no chão ou ao alto, rasos de água, abafados sem som nem convulsão de soluços. Havia entre eles, no meio das gentes, alguém que levava entre braços uma malinha de mão pesada que não largava nem queria partilhar o fardo. Segurava nela com as duas mãos o peso do pesar que trazia dentro de si. Só seu. Levava agarrado, parecia, o conforto e segurança do que ainda se reconhece, baluarte embalado no compasso do seu cortejo, na cadência dolente do entrançado desfeito dos cabelos prata e ouro, longos, antigos, onde cabia ainda a memória dos dedos dele em vida.

Hoje era assim. Amanhã, não sabia. Amanhã era o dia depois de todas as bodas juntos.

Sinto tanto meu bem. Lamento. Sinto até porque não sentes já. Sinto por ti que deixaste de sentir. Tu que devias poder sentir tudo. Sinto o triste de teres dito adeus há tanto tempo que hoje, dia de vela, não há despedidas para ti, não há rito de partida, essa aconteceu devagar por tanto tempo que, hoje, não há presente para carpir.

É um choro seco de alívio triste, libertador. Sinto o luto do virar dos dias que hão-de vir...
A morte, vivo-a por ti. Velo-te. Sei que não poderás fazê-lo por mim.





segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Fauvismos




Distraí-me hibernada a vaguear num rasto do teu cheiro.
Deixei queimar tempo em forma de bagos. 
Raspei todos os amargos e ao olhar para o fundo do tacho, iria jurar que vi pontilhado o teu rosto.