segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Eu, o teu invólucro.




Invento-me por vezes na temperatura que aumenta no teu corpo ou nos teus olhos piscos e jeito de menina, num faz de conta que sou o que és. Acompanho-te silencioso desde que nasceste.  Gostas de mim no momento pernilongo quando escorregas depressa instantes antes de te embalar. Não adormeces no sofá, na cadeira.  Evitas levar-me onde te incomodam os esconsos. Tens o hábito (estranho diria) de projectares casas, construir casas, decorares casas. Há quem medite, ou recite mantras, tu cansas-me! Vences-me porque me esgotas a visitar salas. Dás-lhe corpo, partes paredes, arredas móveis, tiras gente e pões Minottis, enquadras armários-contadores, mesas Deco, e velas Byredo a cheirar a Biblioteca (as tuas “osmias” confundem-me). Depois desarrumas tudo e trocas por uma parede Eva Menz e são agora  04:30 da manhã e eu ando a pôr gardénias em jarros na enorme mesa tosca no alpendre, enquanto apontas a sentenciar "mais para a direita!", sentada num  cadeirão velho que acabaste de estofar verde-musgo.

Tens bom acordar porque adormeces bem.
Sorris pela manhã. O teu sorriso acorda imediatamente antes das tuas pernas. Demoras-te um minuto a falar de boca fechada - porque achas que a língua demora o seu tempo e te faz cócegas se for apressada. “Umgfhs”  que tens a mestria de dominar, mas ouvido “Queres café com leite” soa a “Queres casar comigo”, o que pode gerar alguma confusão. 

Cobres-me para iludir o tom bege que te pontilha mais denso em camadas. Arrancas-me os trapos no fim do dia. Não guardo um cheiro - não como tu que conservas e assinas um que te assina há anos. Sou todos por onde passas e que ao primeiro passo que dás me afastas deles. Nada impregna em mim, mas pensando bem, sei tudo sobre os que não pressentes sequer, que se misturam por onde te passeias (se soubesses quantos paralelos vivo por ti…). Mas és tu quem pinta as estações,  e as que gostas na seda  são cores a saber a pistáchio, buganvílias ou ártico.

Gostas de imagens bonitas. Não tanto pelo ter e haver, mas pelo imenso prazer que te dá olhá-las. Celebrá-las. Fixá-las. No entanto nunca parece relevante recordares-te onde deixas o teu carro, não olhas para o relógio, não abres cartas e não choramingas as velas que apagas. Não vais ser avó,  serás outra coisa qualquer que não se define pela função.

Nada me assusta tanto como deixar de ter valor para ti. Sou o teu medo!  Chamas-me Perda. Sê tenaz. Não me percas! Sem que exista (Eu em ti),  o todo-poderoso em chama eterna não passaria de fogo-fátuo. Guarda-me. Sei que estou aqui para me vires olhar. Vens buscar-me como tesouro, mas não sou mais que lascas com legenda a representar o todo que lhe falta. Revisitas-me como quem recupera contos de crianças à procura de uma sabedoria que não poderia ter lido antes - Punção, Consciência e Melhoria (?). Mas tira-me o pó e aqui és tu, em partículas de acervo doirado. Esse pó que te sai dos dedos e que vais depositando na pele, morna e sem granulado. Na tua, e na deles....




Salvador Dali, Cubist Self-Portrait.


                                                                                                                                               

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