segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

The curator





Tinha uma caixa de cheiros. 
Coleccionava essências destiladas da passagem das mulheres e homens na sua vida. Nem todos o faziam sorrir, mais ainda pesava-lhe senti-los delir sem que tivesse consentido deixá-los desmaiar ou transmutar em eflúvios amarelecidos a cheirarem a nada, anódinos. Resolveu como substituto coleccionar sons, gravar campainhas de porta, atendedores de chamada, ranger das camas, a cadência única de um passo…

Perguntou-me se achava isto patético. Achei que não. Ouvindo-o, imaginei que poderia orquestrar-te com vários recursos numa vibrante variação.






terça-feira, 15 de dezembro de 2020

AEON





Vinha tarde para casa quando vi um acidente. Nada que sugerisse ambulância, mas um molho de folhas garridas em mossas e chapa aos berros. Sigo até um outro, mais silencioso, que acaba de acontecer e pergunto-me se os dois quilómetros estariam fora da linha segura onde um portal de caos atingia a faixa. Viro a esquina e ia atropelando um gato. Galgo o passeio. Acordo no postal onde não gosto daquele escurecer precoce que as nuvens antracite provocam ao fim de um dia de outono. Tenho frio, gelo por dentro e sinto picos nos dedos, que não aquecem.
Hoje houve 2 acidentes e um gato que se safou. Olho e já choveu ali, sem me molhar.
Tudo à minha frente, uns segundos antes de mim.

Estás ai, não estás?

"Estás aí? Entrelaças-me o cabelo, aninhas-me a manta nas costas? Embalas-me? Responde-me, só desta vez, responde baixinho para não quebrar o encanto...Beija-me os olhos. Escreve-me num pangrama. Diz-me, subliminar numa notícia na rádio. Faz-me olhar contra um néon com sentido. Estás ai? Fica, ficas?"

                                                                   
Fotografia: "As asas do desejo", Wim Wenders