segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Insónia


Torço-me acordada. O Manel amua no sonho porque me mexo e não sossego e faço ranger-lhe um sono que não o descansa. Fico hirta a sentir a guinada enquanto me vejo cair flecha de ponta acesa, em vertigem onde estou parada na volta de um remoinho, e acho que já me vi aqui. 

Escorrego hálito ácido pela garganta, conheço-lhe o gosto, engulo e sinto o estômago arder e reprimo lembrar-me das muitas vezes que o ouvi borbulhar e o contive dentro.
Apago a vergonha de não ler avisos e não sair do quarto quando o alarme toca enquanto vejo todos fugirem do fogo e eu fico queda a querer acreditar que é engano deles. Olham-me incrédulos quando me porto como o Pedro sem lobo a ter sabido melhor e não ter corrido depressa e espantam-se depois quando avanço mais uma vez sem olhar a proibidos por onde esbarrei em excesso e multa, contra muros e gentes. 


O Manel abre agora os olhos por não embalar mas, sinto, censura-me pelo mesmo. Que posso dizer quando me baralho a silenciar punções que piscam “nefasto” sem conseguir contrariar algum imperativo irracional. Quando sei melhor e erro. Erro, não há atenuante. O Manel acorda e balbucia-me agora qualquer coisa que irritado pretende sossegar-me para o deixar dormir, a mim, que estou acordada a afundar-me corroída num travo a bílis. Tusso. Queria expurgar o espesso que se acumula na boca. Nada sai que não um ronco seco. Tenho uma bola de pêlo. Tenho um grão na garganta.

" Não faças isso, Joana! Já te disse quinhentas vezes!"- Tantas o disse à miúda e estou a ver-me aqui, agora a querer patear quando me oiço dizê-lo a mim mesma: " Graça! Quinhentas vezes, disse-te quinhentas vezes".  Esperneio sem pensar e acordo de vez o Manel que se levanta e me grita: "Que raio te deu hoje, Graça?".  
Não sei que raio me deu, mas estou a soltar um grão. Onde há erros clonados a boiar na superfície dos meus gestos, há um grão lá em baixo. Estou a mergulhar sem escafandro a entender o porquê da gosma-bola-de-pêlo teimosa que insiste em obstruir o canal entupindo-me de chegar ao fundo ou ao cume para respirar melhor. Leio o sintoma inflamado: o grão alojado no sitio errado,  esquecido e penhorado por camuflagem madrepérola que de tempos em tempos a vida se encarrega de cobrar implacável os juros.

"Manel... Vá, anda lá tu para a cama, não tenho sono, hoje fico no sofá."


                                                                                                                   Fotografia: Peter Lippmann

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